Há cerca de um ano escrevi o texto abaixo com a intenção de publicá-lo em jornal ou revista. Não encontrei um espaço para isso e acabei deixando-o arquivado. Acontece que essa escrita foi tão prazerosa que merece uma publicação, mesmo que tardia.
Montpellier, vestida para dançar.
Graziela Andrade
Partindo de Paris, a cerca de
três horas de trem em direção ao sul está Montpellier,
uma cidade que se veste de paisagens culturais variadas, como se buscasse
atender a nossos velhos sonhos de um lugar ideal para se viver. O cenário é
mesmo onírico. Capital da região Languedoc-Roussillon,
banhada pelo mediterrâneo e com mais de mil anos de histórias para contar a
cidade exibe toda a sua simpatia azul em um
verão que guarda o sol até as dez da noite para proveito dos cerca de 250 mil
habitantes (o número dobra quando se conta a região metropolitana) e inúmeros
visitantes que passam por lá, atraídos pelo céu, mar, sol e também pelos
diversos festivais que são promovidos. Em um desses descobri Montpellier vestida para dançar. Mas, as
fantasias poderiam ser outras: cinema, vinho, arte chinesa, gastronomia, show
de cavalos... faça seu pedido!
O meu foi atendido! Uma cidade
que inspira e expira dança, ao menos entre o fim de junho e começo de julho. Há
mais de 30 anos isso acontece. O Montpellier
Danse, transforma a cidade em uma espécie de capital da dança, é um
festival consolidado, respeitado mundialmente e pelo qual já passaram inúmeras
companhias e os nomes mais falados do universo da criação coreográfica contemporânea.
Aliás, melhor seria empregar a palavra região, pois os espetáculos oficiais
acontecem em 23 espaços diferentes, que se estendem pela chamada aglomeração de Montpellier e por outras cidades de Languedoc-Roussillon. Além disso, há
ainda o festival off organizado por
artistas locais que não se apresentam no circuito oficial, mas promovem
espetáculos em lugares e horários alternativos. O preço da grandeza está no necessário
esforço da renovação, pauta que o presidente do festival, Michel Miaille, aponta como desafio tomado para esta 31° edição.
Neste rumo, o festival de 2011, que aconteceu entre 22 de junho e 07 de julho,
apostou em algumas reformulações em seu programa com a intenção de promover a
abertura do pensamento e novos caminhos a se explorar.
A primeira foi a inclusão das
artes circenses na programação como possibilidade de alargar o imaginário do
corpo a partir do trabalho de artistas que também o tomam como expressão e como
questão na criação. Atravessando o mediterrâneo encontramos a segunda sugestão
da curadoria. A aproximação que tem sido realizada com as companhias
Israelenses garantiu forte presença dos artistas de Tel-Aviv no festival, cidade que seria, assim como Lyon e Montpellier na França, a capital da dança em Israel. A terceira sugestão
de novidades para o festival tratou das agradáveis tardes divididas com o
artista associado Raimund Hoghe – diretor,
ator, escritor e dramaturgo de Pina
Bausch durante toda a década de 80 -, que promoveu encontros em um formato
experimental de atmosfera incrivelmente gentil. Pude saborear com grata
surpresa essas propostas da curadoria, embora não tenha encontrado poética em
todos os espetáculos que assisti o que, naturalmente, fez com que algumas das
experiências que tive tenham parecido esvaziadas de sentido. Falemos, no
entanto, do que me tocou, partindo da pista que já foi dada: Les aprés-midi de Raimund H.
Foram seis os encontros, sem um
programa previamente definido, com a simples intenção de reunir pessoas com
alguns interesses comuns e a partir daí trocar inspirações, pensamentos,
olhares e, especialmente, refletir sobre novas maneiras de se criar. O
coreógrafo, de generosidade apreciável, conduziu a tarde que presenciei como
uma suspensão no tempo. Uma pausa delicada sem objeto claro, diante da qual
prevaleceram sensações como as de pureza, amabilidade e encantamento artístico.
De maneira muito simples, Raimund apresentava
alguns vídeos autorais ou de cantores que aprecia e comentava sobre como cada
um deles o sensibilizou através de meros detalhes, como as mãos presas à
cintura do ícone francês Edith Piaf ou a intensa tristeza da cantora Dalida. Com o reforço das palavras de Raimund, essa francesa de origem egípcia
que na imagem interpretava Avec le temp, gerou um silêncio comovente na bela sala Béjart, um dos espaços da edificação
chamada de “Agora: cidade internacional da dança”. Orgulho da cidade esse complexo,
reformado em 2010, é inteiramente dedicado a criação artística em dança e tomou
o lugar do antigo Couvent des Ursulines,
no centro histórico de Montpellier. Foi
lá que, como quis o artista, abriram-se as portas para sua fábrica de criação e
nesse espaço, não há nenhuma parafernália ou grandes aparatos técnicos, quiçá o
corpo: a lição da tarde versa sobre a máxima da sensibilidade. É nela que Raimund encontra o desconhecido, que
nos revela com seu altruísmo tão peculiar.
Contrariamente, dois outros
espetáculos que assisti podem ser ponderados pela complexidade, embora essa
seja a única semelhança que posso citar entre eles. P.P.P. (Position Parallèle au Plancher) de Phia ou Phillipe Menard,
exibido no Brasil em abril de 2010, já se apresenta nessa circunstância pelo
próprio título e nome da artista. Em cena o corpo de um homem que se sente
mulher entra em combate com tal realidade e coloca-se em risco questionando o
habitar de um corpo que não revela em nada o que se é.
No palco estão três congeladores móveis: um deles repletos de bolas de
gelo que a performer usa como
malabares e, ainda, três grandes blocos congelados com os quais o corpo cria
embates. Sob toda a extensão do teto estão penduradas várias outras bolas,
também de gelo, que despencam de tempos em tempos despedaçando-se com violência
no contato com o chão. Diante do espaço descrito o corpo pena, queima-se,
desliza, sofre quedas, corre riscos. O gelo como elemento estético e reflexivo complementa
o cenário de uma dura batalha, onde é preciso manter o equilíbrio entre as
memórias de um corpo que se desmancha e seus registros já solidificados. Os
aplausos mais calorosos que ouvi durante o festival parecem colaborar com os
desmanches que por fim cobrem o palco. O novo estado do gelo é corrente e
anuncia uma desejada fluidez entre corpos.
Já em Brillant Corners, do israelense Emanuel Gat,
a complexidade está na própria constituição do movimento. Aliás, o complexo
parece ser o princípio das formas propostas que se ordenam e desordenam, como a
imagem de um grande cardume que altera o volume de sua paisagem. Nesse todo que
se conforma ininterruptamente, cada parte pode ser vista em solo, mas
completamente integradas entre si. Como o pensamento complexo sugerido pelo
pesquisador Edgar Morin, a cena se
compunha em ações de distinção, conjunção e implicação, em que era possível,
sem dissolução das partes, ver cada bailarino, cada conjunto, e ao mesmo tempo
todos como um só organismo. A dança de Gat
beira a hipnose, revelando um universo vivo e interdependente diante de um sistema
de forças encarnado pelos corpos de bailarinos. O artista põe em evidência uma espécie de
organismo coreográfico em retroalimentação, no qual paira uma energia em
circulação contínua que é ao mesmo tempo produzida e consumida pelo movimento
daqueles dez corpos e do único grande corpo que eles também são. O movimento
que se desenhou nesta noite alcançou uma qualidade própria ao ato de ser e de
viver e pode nos fazer refletir sobre como a dança, enquanto movimento de
corpos no mundo, pode mesmo se inspirar ou ser vista em muitas esquinas por aí.
Afinal, dança e vida dividem um só lugar de encontros, que por vezes, brilham
mesmo.
Esta singular paisagem em
formação, exibida no charmoso teatro a céu aberto do Agora, encerrou a visita à
cidade fantasia em seu viés dançante. Neste ano, os organizadores do Montpellier Danse preocuparam-se em
promover um festival no qual fosse possível a realização de encontros entre
artistas e público, a experimentação de formatos e linguagens, cuidando ainda de
evitar restrições em termos de preferências estéticas. Três dias foi um período
curto demais para se ver tanto, e ao mesmo tempo, suficiente para se apreender uma
atmosfera ímpar de realização em dança que, se não alcança tudo o que pretende,
renova o essencial desejo de se continuar criando.
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